Por Flávia Fernandes
A recente decisão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) de suspender a coleta de dados biométricos pela Tools for Humanity (TFH), responsável pelo projeto World, expõe dilemas fundamentais sobre privacidade, consentimento e a exploração de dados sensíveis, como anunciado na última coluna aqui no Realidade Capixaba. O cerne da polêmica reside na promessa de uma identidade digital universal baseada no escaneamento de íris, atrelada à oferta de criptomoedas como incentivos. O Brasil se junta a outros países, como Quênia, França e Alemanha, que também impuseram restrições ou investigações ao projeto.
A ANPD fundamentou sua decisão na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabelece que o consentimento para o tratamento de dados pessoais sensíveis deve ser livre, informado e inequívoco. Contudo, ao oferecer uma contrapartida financeira pela coleta de dados, a World potencialmente deturpa a manifestação de vontade dos indivíduos, principalmente aqueles em situação de vulnerabilidade econômica. Afinal, quão “livre” é a escolha de vender dados biométricos quando se enfrenta dificuldades financeiras?
O argumento da empresa de que a identidade digital proporciona maior segurança no mundo digital e na interação com inteligências artificiais esbarra em questões críticas. Diferente de senhas ou e-mails, uma íris não pode ser alterada ou substituída. Isso coloca os titulares em uma posição de vulnerabilidade permanente, sem garantias concretas de que seus dados não serão usados para desconhecidos fins no futuro.
Outro aspecto alarmante é a falta de transparência quanto às reais intenções da World. A quem realmente servem essas identidades digitais globais? Quem se beneficia do acesso centralizado a um banco de dados biométricos de milhões de pessoas? A promessa de inclusão digital e segurança pode, na prática, mascarar um modelo de negócio baseado na exploração massiva de dados. Se os dados são uma nova moeda, a World parece estar comprando informações a um preço relativamente baixo, potencializando seu valor para propósitos futuros que sequer foram plenamente esclarecidos.
A suspensão imposta pela ANPD não deve ser vista como uma resposta regulatória local, mas como um alerta global sobre os perigos da coleta de dados biométricos em larga escala. À medida que novas tecnologias emergem, o debate sobre privacidade e segurança deve ser ampliado, garantindo que a inovação seja conduzida com responsabilidade e respeito aos direitos individuais.
O caso World é um lembrete de que, na era digital, a proteção da privacidade não pode ser vista como um luxo, mas como uma necessidade. Qualquer iniciativa que envolva dados biométricos deve ser submetida a um escrutínio rigoroso, assegurando que os direitos dos cidadãos estejam sempre em primeiro lugar. No fim das contas, a pergunta que persiste é: até onde estamos dispostos a ir em nome da tecnologia? E, mais importante, quem realmente sai ganhando com essa troca?
SOBRE A AUTORA
Flávia Fernandes é jornalista formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), professora de língua inglesa e especialista em inteligência artificial pela PUC Minas e Faculdade Exame. Apaixonada por comunicação e inovação, investiga as conexões entre tecnologia, sociedade e o cotidiano.